O IBOPE SUBIU, E O PIX SUMIU NA TV RECORDE

Jornalistas da Bahia são acusados de roubar 500 mil reais de doações dos espectadores para pessoas pobres ou doentes que participavam de um programa da TV Record

Marcelo Castro, hoje com 36 anos, era uma estrela na TV Record da Bahia, na posição de principal repórter e substituto habitual do apresentador titular, o histriônico Bocão, na edição local do Balanço Geral, um programa que tem cr1mes, dramas humanos, assistencialismo e reportagens jocosas nas periferias. A popularidade lhe rendeu fãs e um Instagram com mais de 160 mil seguidores.

Por ter muitas fontes na polícia, sempre conseguiu acompanhar de perto, muitas vezes ao vivo, as operações de combate ao tráfico, de resgate de reféns em sequestros ou mesmo troca de tiros em bairros pobres de Salvador. Nessas ocasiões, aparecia vestido com um colete azul a prova de balas, com a logomarca da emissora estampada no peito.

Para não identificar os policiais durante as operações mais delicadas, chamava-os de “Juca”, apelido que se tornou um bordão. Assim, ajudava a rechear as quase quatro horas de programa, exibido das 11h50 às 15h30, de segunda a sexta-feira, e a fazer da atração um sucesso que chega a liderar a audiência no horário em  momentos, ultrapassando a liderança da afiliada local da TV Globo.

Nos últimos tempos, Castro estava chamando a atenção com campanhas para crianças e adultos pobres e doentes que precisavam de dinheiro para custear seus tratamentos.

Em 28 de fevereiro de 2023, foi ao ar a história de Guilherme, de apenas 1 ano de idade, que precisava do remédio Qarziba para o tratamento de um tumor no crânio e outro barriga. Uma única ampola do medicamento custa na casa de 73 mil reais, e o menino precisava de cinco, somando 365 mil. A família entrou na Justiça para que o SUS fornecesse o remédio, mas o pedido foi negado. Recorreu então ao Balanço Geral. A mãe fez duas entradas ao vivo que somaram trinta minutos de duração, com uma trilha sonora dramática ao fundo. Na tela, o número da chave  Pix para doações.

O público respondeu rapidamente ao chamado da emissora, com um montante que chegou mais tarde a 109,5 mil reais. E então um espectador célebre apareceu: o jogador Anderson Talisca (nascido em Feira de Santana, revelado pelo Esporte Clube Bahia, e hoje colega de Cristiano Ronaldo no Al-Nassr, na Árabia Saudita) entrou ao vivo para avisar que arcaria sozinho com a primeira ampola. Ele estava em Salvador enquanto tratava uma lesão e estava assistindo ao Balanço Geral.  Fora do ar, porém, o repórter tomou uma atitude que despertou a desconfiança do atleta. Ele passou para o staff do jogador um número de Pix diferente do que aparecia na tela, segundo o delegado Charles Leão, titular da Delegacia de Repressão a Crimes de Estelionato Por Meio Eletrônico, a DreofCiber.

O advogado dividiu seu estranhamento pela diferença das chaves Pix e reportou a troca à direção da Record. “A gente não ia fazer o Pix para qualquer pessoa. Tivemos o cuidado de conferir quem iria receber o valor para só transferir quando fosse para a mãe da criança”, disse o advogado do atleta, Valderson Mendes, ao podcast PodZé, do apresentador Bocão, que se chama José Eduardo Alves.

Não se sabe exatamente o motivo da mudança, mas ela deflagrou uma investigação interna. A direção da emissora constatou que a chave Pix divulgada na tevê pertencia a um barbeiro, que não tinha relação formal com o programa. Constatou também que, dos 109,5 mil reais arrecadados entre espectadores, só 40 mil chegaram à família. De acordo com a polícia civil, os outros 69,5 mil reais foram roubados por envolvidos em um esquema de desvio de Pix.

Desse dinheiro, aponta a investigação, 27 mil reais foram para o bolso de Castro, o repórter que narrou o drama do garoto, distribuídos de maneira pulverizada – uma parte por boleto bancário pago pelo barbeiro e outras por transferências diretas, em movimentações feitas pelo motorista de aplicativo Lucas Costa Santos e pelo editor-chefe do programa Jamerson Oliveira. Os dois, diz a polícia, também embolsaram parte do dinheiro: o primeiro 9.000 reais, e o segundo, 31.500 reais. Tudo roubado dos recursos que deveriam ser usados para salvar a vida de um bebê, o que todos os nomes citados negam enfaticamente desde o princípio.

Essa história tem um fim trágico. O menino Guilherme não resistiu à doença e morreu dias depois do apelo feito na Record. Ainda na fase da investigação, a polícia chegou a levantar a hipótese de os desvios das doações terem relação direta com a morte, mas ela não consta no relatório final. “Nós ouvimos a médica que estava atendendo aquela criança. E ela foi muito enfática em informar que pelo estado avançado do tumor, já não se podia fazer mais nada. Mesmo com a aplicação dos remédios naquele momento, não poderia ter sido evitado o fator morte. Assim deixou-se de analisar qualquer dolo eventual em relação a um possível homicídio dessa criança”, explica o delegado Leão.

Em nota, a TV Record disse por meio do advogado que representa a emissora: “Após tomarmos conhecimento da fraude perpetrada com participação de dois colaboradores da emissora, elaboramos pedido de instauração de inquérito policial”.

A emissora também destacou que “todos os colaboradores que participaram da fraude foram desligados de suas funções, tendo a emissora tomado todas as medidas cabíveis, tanto do ponto de vista criminal, quanto do trabalhista”. A piauí teve acesso ao relatório final da investigação, que incluiu a quebra dos sigilos bancários dos suspeitos. A conclusão é que o repórter Marcelo Castro e o editor-chefe Jamerson Oliveira eram líderes de um esquema criminoso, que desviou mais de 500 mil reais em doações, entre setembro de 2022 a fevereiro de 2023.

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