O Golpe programado como Plano de Longo Prazo
Durante uma década, uma rede online mobilizou indivíduos para apoiar a ditadura militar contra a Comissão Nacional da Verdade. A meta era impulsionar o golpe contra Bolsonaro. Há precisamente uma década, entregávamos à presidenta Dilma Rousseff o relatório conclusivo da Comissão Nacional da Verdade, a CNV, que elucidava alguns dos principais delitos cometidos durante o regime militar.
O texto é fruto de um trabalho conjunto que, ao longo de dois anos, envolveu representantes do governo, políticos, centenas de pesquisadores e, principalmente, as vítimas do regime militar. Eu estava entre esses estudiosos, participei da cerimônia, acompanhei os estudos que originaram a CNV, e também presenciei sua dissolução e a destruição de seu patrimônio. Também observei como nas redes sociais surgiu uma espécie de “contra-narrativa” aos trabalhos da Comissão.
Observei a disseminação de mensagens que contestavam nossas descobertas e exaltavam os militares através de páginas e perfis apócrifos no Facebook, mesmo em ambientes virtuais que pouco ou nada tinham a ver com o tema.
Os debates ocorriam nos comentários de perfis mais extensos que discutiam jogos de videogame, em páginas que abordavam a cidade do Rio de Janeiro, e em grupos que discutiam investimentos, entre outros tópicos. Nenhum “local” parecia ter sido previamente indiferente ao assunto.
Naquela época, o WhatsApp, que começava a ganhar popularidade entre os brasileiros, seguia uma tendência bastante parecida com a das redes sociais. A tranquilidade dos grupos, já comprometida pelas eleições de 2014, era incessantemente desafiada por mensagens que protegiam os militares contra o revanchismo da “ex-terrorista Dilma”, conforme declarado nas mensagens.
Além da variedade “espacial”, ou seja, dos diversos campos utilizados pela ofensiva contra a CNV naquele período, também me chamou a atenção o fato de que grande parte dessa iniciativa referenciava as mesmas fontes, sempre os mesmos blogs, páginas do Facebook, vídeos e canais do Youtube. Ao serem obrigados a elaborar respostas, utilizavam os mesmos argumentos, os mesmos exemplos e até a forma de escrever era parecida.
Perdi a conta de quantas vezes ouvi histórias de indivíduos que afirmavam ter conhecido a esposa do Coronel Ustra e como ela costumava entregar fatias de bolo para os “moços e moças” encarcerados no DOI-CODI.
Sempre o mesmo enredo. Era evidente que existia uma coordenação coordenada, que toda aquela “contra-narrativa” contra a CNV tinha uma origem que poderia, ou melhor, deveria ser identificada.
Procurei por alguns perfis e páginas que compartilhavam essas mensagens. Os perfis e páginas representavam apenas o começo de um percurso que, frequentemente, culminava em um grupo de WhatsApp. Na realidade, eram grupos, já que cada perfil, cada página, te direcionava para um grupo distinto.
Claramente, existia uma articulação. Pior, uma estratégia que não só visava a disseminação de materiais que negavam os delitos da ditadura militar, mas também a captação de novos soldados para esse projeto.
Estratégia que parecia funcionar, já que era cada vez mais frequente encontrar esse tipo de conteúdo circulando, inclusive sendo favorecido pelos algoritmos do Facebook, que já naquela época ampliavam a visibilidade de publicações tidas como “polemicas”.
Em outras palavras, a estrutura da plataforma facilitava a formação de novos soldados para o combate à CNV. Pior ainda, soldados que funcionariam como autênticos transmissores, propagadores desse tipo de informação contagiosa, infectando e atraindo novos soldados para a causa.
Naquela época, meus amigos me diziam que era apenas “um grupo de loucos” na internet.
No entanto, à medida que o tempo avançava, a estratégia dos “loucos” se modificava e a operação parecia ter iniciado uma nova etapa. Agora, não se concentravam apenas em mensagens diretas em defesa do regime militar, na participação em polêmicas, mas também em um método, digamos, mais sofisticado de comunicação.
Atenuavam o discurso negativo, mascarando-o com perspectivas alternativas e “politicamente incorretas” da história do Brasil, enquanto intensificavam as críticas à academia e à historiografia do país, colocando-as em cheque.
“Pregação comunista”, diziam, enquanto solicitavam que você questionasse seus avós sobre o que significou a ditadura militar.
Estratégia antiquada, a mesma empregada pela indústria tabagista americana para manter o consumo de cigarros mesmo após a descoberta de que provocavam câncer. Ao mesmo tempo que colocavam a ciência em dúvida, apresentavam a sua própria interpretação dos fatos, uma versão, por assim dizer, mais confortável, acessível e familiar.
Quem devemos confiar? Nos comunistas malévolos que tinham como objetivo destroçar o país, ou nos nossos avós que experimentaram a ditadura militar?
Atualmente, esse negacionismo “soft” já não se limitava aos grupos de WhatsApp e discussões em páginas do Facebook. Ele se manifestava na voz e nas palavras de comentaristas políticos que ocupavam posições em grandes meios de comunicação, como jornais, rádios e até televisão.