“Gritando por socorro”, diz mãe de menina que morreu em hospital público

Anna Júlia Galvão morreu após dias de peregrinação pela rede pública de saúde. Família afirma que houve negligência.

Millena Galvão lembra com angústia e consternação as últimas horas de vida da filha, Anna Julia Galvão (foto em destaque), em busca de atendimento na rede pública de saúde do Distrito Federal.

A menina de 8 anos ficou cerca de sete horas aguardando uma ambulância para levá-la de uma unidade de pronto-atendimento (UPA) para o Hospital Materno-Infantil de Brasília (Hmib), onde foi intubada e faleceu.

“Ela gritou por socorro”, relembra a mãe. O Metrópoles teve acesso à certidão de óbito da criança, que apontou pneumonia bacteriana e choque séptico como causas da morte.

Esse é o terceiro caso que vem à tona em que pais apontam negligência médica na morte dos filhos na rede pública de saúde (leia mais abaixo). O caso de Anna ocorreu há um mês, em 17 de abril. Mas, na memória de Millena, é como se os acontecimentos fossem da noite anterior. “Acabaram com os sonhos de uma criança de 8 anos”, disse.

Peregrinação
Em 15 de abril, Anna Júlia apresentava febre, tosse e dificuldade para respirar, queixando-se também de dor nas costas. A família a levou à Unidade Básica de Saúde (UBS 7), em Ceilândia, onde fez teste rápido de dengue e PCR para Covid. Ambos deram negativo. Nesse primeiro dia, a enfermeira teria dito que não havia indicativos de problemas respiratórios, segundo relatou a mãe.

Na manhã seguinte, a família foi à UBS 5, também em Ceilândia. Na unidade, foi feito um exame de sangue às 10h e o resultado ficou pronto apenas às 17h52, quando a família foi informada de que já não havia mais médicos no local. De acordo com o site da Secretaria de Saúde, o funcionamento da UBS é até as 19h.

Com a pequena apresentando piora no quadro clínico, a família decidiu levá-la, novamente, à UBS 7. Lá, o horário de atendimento é ampliado e acontece, também, no período noturno. Segundo a mãe, a menina foi levada às 20h30, com fortes dores nas costas e muita sonolência.

Dessa vez, com os resultados do exame e após auscultar o pulmão da paciente, a médica teria informado que não havia estrutura na UBS e a encaminhou para a UPA I de Ceilândia.

Os parentes informaram que a criança chegou por volta das 22h na UPA, mas só foi atendida às 2h30 do dia seguinte. A médica teria solicitado internação e novos exames. Na madrugada, Anna ficou sob os cuidados da bisavó, que contou à mãe que na madrugada nenhum profissional pegou a criança para fazer exames.

“Só tinha atendimento quando ela implorava”, disse a mãe, detalhando que cabia à bisavó levar a criança para os locais. “Deixaram tudo para uma senhora resolver. Ela tirava o oxigênio para que as duas atravessassem a unidade de saúde para fazer o exame e voltar. Minha filha estava cansada, com problemas respiratórios, e não colocaram nem uma cadeira de rodas para ela”, disse.
Por volta das 9h, a família foi informada de que a criança seria transferida para o Hospital Materno-Infantil de Brasília. No entanto, a ambulância só chegou para transferência às 16h.

Cerca de meia hora depois, a menina chegou ao Hmib. Nesse momento, a menina dizia que estava tonta, mas a mãe alega que foi informada pelo médico da Secretaria de Saúde que “era assim mesmo”.

Calvário
Em seguida a menina entrou em choque, teve falta de ar, gritava e se debatia de dor, de acordo com Millena. “Eu via que minha filha estava em um sofrimento respiratório.”

Ela foi colocada na sala vermelha em estado gravíssimo e foi aplicado sedativo para fazer a intubação. Durante esse procedimento, Anna Júlia morreu.

A mãe disse que pediu na hora uma necropsia. “Eu sabia que era negligência, eu tenho certeza”, contou. “Ao mesmo tempo, vários profissionais estavam nos desencorajando a não fazer, principalmente a psicóloga e um enfermeiro, que me disseram indiretamente várias vezes que o Hmib não tinha culpa”, informou a mãe.

Ela prestou um depoimento no dia seguinte na Delegacia de Polícia da Asa Sul e pediu para que o corpo fosse periciado no Instituto de Medicina Legal (IML), onde aguarda o resultado do laudo.

Nesta semana, o caso foi encaminhado à 24ª Delegacia de Polícia (Setor O), por ficar mais perto da família. Millena prestou o depoimento para a nova investigação nessa segunda-feira (20/5).

Em nota, a Secretaria de Saúde afirmou que a criança teve “todo o suporte da equipe médica” e sugeriu à reportagem “encaminhar a demanda ao Iges-DF [Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal] para complementação da resposta”. A instituição é responsável pela gestão das UPAs locais.

Veja resposta:

A Secretaria de Saúde informa que no dia 15 de abril a paciente procurou a UBS, ocasião que foram solicitados exames para diagnóstico. Ao sair o diagnóstico no dia 16, o médico verificou a urgência do caso encaminhando a criança para a UPA. A pasta ressalta que ao dar entrada no HMIB, a paciente foi prontamente atendida, e teve todo suporte da equipe médica. Após todos os procedimentos, infelizmente a criança não resistiu e veio a óbito. Por fim, a Secretaria de Saúde expressa toda solidariedade aos familiares e amigos. Sugerimos encaminhar a demanda ao Iges para complementação da resposta.

Por meio de nota, o Iges-DF informou que a paciente chegou à UPA 1 de Ceilândia, na última quinta-feira (16/4), com sinais vitais estáveis. Ela foi atendida e “recebeu toda a assistência necessária”. Também houve pedida a transferência dela para um centro especializado, “conforme [consta em] protocolo de atendimento”.

“Esclarecemos que, durante o processo de transferência, a ambulância precisou aguardar enquanto a equipe médica estabilizava a paciente, antes da remoção [dela]. Durante todo o período de permanência [de Anna Julia] na unidade, a paciente recebeu cuidados contínuos”, completou o Iges-DF.

A assessoria do instituto justificou que as UPAs têm enfrentado “grande demanda”, especialmente entre crianças, devido à sazonalidade das doenças respiratórias e à epidemia de dengue. “Esses dois fatores combinados têm contribuído para a superlotação delas e o aumento no tempo de espera por atendimento. O Iges-DF expressa solidariedade aos familiares e amigos [da paciente]”, afirmou a nota.

Outras mortes
Em 14 de abril, Jasminy Cristina de Paula Santos morreu na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) do Recanto das Emas. Ela tinha um mês de vida. Segundo a família, houve negligência e demora no atendimento. A bebê recebeu diagnóstico preliminar de bronquiolite, mas não houve solicitação de exames.

A criança foi mantida no oxigênio, soro e salbutamol. A família perguntou se era necessário investigar mais o quadro de Jasminy, mas os profissionais da UPA, segundo a família, se limitaram a dizer que a menina seguiria em observação.

O outro caso é do menino Enzo Gabriel, que morreu em 15 de maio na mesma UPA que Jasminy. Ele tinha apenas 1 ano e morreu à espera de leito de unidade de terapia intensiva (UTI). Os familiares também alegam negligência. Esses dois casos são investigados pela 27ª Delegacia de Polícia (Recanto das Emas).

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Fonte – Metrópoles